Há muito tempo atrás, nas antigas terras ao leste, onde o sol acorda de seu descanso para cumprimentar um novo dia, um menino, n?o diferente de qualquer outro menino em qualquer lugar do mundo, nasceu. Seu pai, um ferreiro de talento mediano, que iniciava seu trabalho ao nascer do sol, feliz por ter um filho a quem passar seu ofício, o chamou Ken.

Ken cresceu como as crian?as costumam crescer, explorando o mundo ao seu redor com a supervis?o de seus pais atentos. Ele fez amigos entre as outras crian?as da vila em que vivia, era ensinado e repreendido por sua m?e, e motivo de orgulho para seu pai. Durante seus primeiros anos nada de extraordinário aconteceu, mas mesmo no futuro, quando sua vida já era diferente de tudo aquilo que ele ou mesmo seus pais esperavam, o mais extraordinário dos eventos de sua existência era desconhecido para ele e para aqueles ao seu redor.

A maior maravilha da vida de Ken se iniciou em um dia comum. Era início da primavera e o festival da esta??o ocorreria em poucos dias, no entanto Ken n?o estava pensando nisso, ele estava se divertindo, brincando com outros meninos e meninas de sua idade. Durante sua brincadeira ele entrou na floresta, mas n?o foi fundo, pois sua m?e já tinha lhe avisado dos perigos de tal lugar. Mal havia ele dado sete passos dentro da orla das árvores quando ouviu um som que chamou sua aten??o. Era uma pequena raposa branca, cuja pata estava presa debaixo de uma pedra. Com pena do animal, Ken se aproximou lentamente e com cuidado soltou a patinha da criatura. A raposa n?o perdeu tempo e fugiu para mais fundo na floresta.

O jovem menino n?o se importou com a pressa da raposa e voltou para a sua brincadeira, rapidamente esquecendo o evento. O que ele n?o sabia, era que a raposa que salvou n?o era um animal comum e sim um dos mensageiros do deus Inari, que deixou sua residência de inverno nas montanhas para cuidar de suas fun??es como o deus da agricultura e arroz. Ouvindo da boa a??o da crian?a humana e se sentindo generoso com o início da esta??o, Inari decidiu visitar o garoto. Na calada da noite o deus entrou na casa da família do ferreiro e pairou sobre o menino que tinha ajudado seu servo. Afastando as longas mangas de seu kimono, Inari tocou as m?os de Ken e lhe deu uma ben??o, antes de se virar e partir para continuar seu trabalho, deixando para trás uma família inconsciente de sua boa sorte.

O tempo passou e logo Ken tinha idade para come?ar a aprender o oficio de seu pai. Ele aprendeu rapidamente e logo se tornou claro que sua habilidade n?o demoraria a superar a de seu progenitor e todos se surpreenderam e se alegraram com suas crescentes capacidades, afinal, Ken era de uma boa e honesta família e ele mesmo tinha uma personalidade simpática e feliz que agradava a grande maioria das pessoas que o conheciam. N?o havia raz?o para lhe desejarem qualquer mal ou n?o se alegrarem com suas conquistas.

A vila em que Ken e sua família viviam era pequena e n?o muito importante. A maior parte do trabalho de um ferreiro vinha de objetos comuns voltados para a agricultura. Mesmo limitado naquilo que criava, o talento de Ken brilhava mais do que as estrelas do céu noturno.

Um dia um estranho chegou a pequena vila. Ele era um velho ronin, um samurai sem mestre. Poucos dias antes ele havia lutado com um grupo de bandidos e na escaramu?a sua espada, já antiga, foi irremediavelmente danificada. Perguntando pela área sobre um ferreiro ouviu sobre o jovem Ken, que a pouco havia entrado na idade adulta, e ent?o se dirigiu ao local onde foi lhe dito que ele vivia.

Ao ser visitado por esse ronin, Ken recebeu o pedido de lhe forjar uma nova espada. O jovem hesitou, pois nunca tinha feito esse tipo de trabalho, mas no fim acabou por aceitar, pois o próprio ronin disse que n?o tinha condi??es de pagar pelo trabalho de um ferreiro experiente. Ken disse a ele para voltar em uma semana e a arma estaria pronta.

A semana passou e durante esse tempo n?o se viu nem a sombra do jovem ferreiro. No dia combinado o ronin voltou para a forja e foi recebido por Ken, que segurava em suas m?os uma espada embainhada. Pegando a arma, o ronin desembainhou a espada e se surpreendeu. Era simples e sem qualquer tipo de enfeite ou acabamento, mas era bem feita e afiada, muito bem equilibrada, parecendo o trabalho de um ferreiro muito mais velho e experiente na área. Ele tentou devolver a espada dizendo que n?o podia pagar por um trabalho t?o bom, mas Ken se recusou e insistiu que ele levasse a arma pelo pre?o previamente combinado. O velho ronin agradeceu e ent?o partiu.

A vida voltou ao seu ritmo normal após a partida do velho ronin e o tempo passou sem preocupa??es excessivas. Ent?o um dia um jovem samurai apareceu na vila. Ele vinha de uma família simples e sem muitos recursos ou talentos marcantes, apesar de servir ao Daimyo da regi?o a muitas gera??es. Ele ouviu falar sobre o jovem ferreiro daquela vila e que seu trabalho era bom e barato.

Ken se surpreendeu com a chegada e o pedido de uma espada do jovem, que na verdade n?o era muito mais velho que ele mesmo, mas aceitou com gra?a e cumpriu ao pedido.

Após isso se tornou comum samurais mais pobres aparecerem na vila atrás dos servi?os de Ken e logo se tornou até mesmo esperado. A reputa??o de Ken cresceu e se espalhou e n?o demorou a chegar o dia em que o Daimyo da regi?o o convocou.

Ao chegar ao castelo do Daimyo, Ken se encheu de admira??o pela moradia. Era muito maior e mais bonita que qualquer outro lugar que já tinha visto antes, acostumado com sua pequena e simples vila como ele era. O Daimyo o recebeu com alegria e disse:

- Já tem um tempo que tenho ouvido falar sobre um prodigioso ferreiro, que apesar da pouca idade faz lindas e mortais espadas, melhores até que as de homens com o dobro da idade e experiencia.

Embara?ado com os elogios, mas ainda orgulhoso de seu trabalho Ken diz:

- Sou apenas um humilde ferreiro e apesar de ficar feliz com os elogios dispensados as minhas espadas n?o gostaria de ultrapassar a minha esta??o. Tudo o que fa?o é meu trabalho.

- Humildade e modéstia s?o virtudes que poucos homens podem afirmar possuir. Você n?o falta em nenhuma das duas. Um bom trabalho merece ser elogiado e recompensado. Eu chamei você aqui, Mestre Ferreiro, para encomendar espadas para mim e meus principais guardas, cujas linhagens a muito servem a minha, e que possuem grande habilidade. A forja e os materiais ser?o fornecidos a você e eu espero um bom trabalho, assim como ouvi falar. – disse o Daimyo.

Se sentindo honrado com os cumprimentos e o pedido do Daimyo e nervoso com a oportunidade inesperada, Ken n?o teve escolha a n?o ser aceitar o pedido. Ele foi guiado a uma forja que ficava n?o muito longe do pátio de treinamento dos guardas do castelo. O metal e as ferramentas eram de excelente qualidade, melhor do que qualquer um que já tenha visto e muito menos que já tenha possuído. Respirando fundo para se firmar, Ken acendeu a forja e iniciou seu trabalho.

Os primeiros dias foram passados sozinho, tendo por companhia apenas o seu trabalho, no entanto, isso mudou no terceiro dia com a chegada de Hayato.

Hayato era o segundo filho de um dos principais guardas do Daimyo, muito habilidoso com a espada, mas de temperamento tranquilo e natureza pacífica. Muitas vezes já foi dito que deveria ser um estudioso com tal personalidade calma, mas acabou por ser um samurai, como era o desejo de seu pai. Ele era alguns anos mais velho que Ken e curioso com o jovem ferreiro e seu pretenso grande talento decidiu pagar uma visita à forja.

- Mestre Ferreiro, espero n?o estar lhe atrapalhando em seu servi?o. – disse Hayato ao entrar na forja escaldante.

Surpreso pela visita depois de três dias de solid?o, Ken demorou um pouco para responder:

- De forma alguma Jovem mestre. A forja é quente e barulhenta, mas se isso n?o lhe incomodar n?o direi n?o para a companhia.

Hayato ent?o se sentou em um canto da forja onde poderia observar, mas n?o atrapalhar o jovem ferreiro. No início a tens?o era clara no ambiente e o silencio constrangedor, mas após trocar algumas palavras os dois homens logo se viram apreciando a companhia um do outro. Se tornou comum ver Hayato em seu tempo de folga sentado na forja observando o delicado processo ou conversando tranquilamente com Ken, quando isso n?o iria lhe distrair. O próprio Ken se viu antecipando esses encontros e mais, quando poderiam se sentar para comer e conversar sem o calor escaldante da forja e do metal. Ambos os jovens se entendiam bem e suas personalidades n?o se chocavam, apesar de suas cria??es e estilos de vida diferentes.

O tempo passou e logo Ken se deu conta de que havia terminado a encomenda do Daimyo. Seu tempo no castelo e com Hayato estava chegando ao fim. Entristecido, mas sem saber o que poderia fazer sobre isso, Ken decidiu que, já que possivelmente n?o mais veria o seu querido amigo, ele lhe faria um presente. Tomado de determina??o Ken iniciou seu projeto e enquanto forjava noite a dentro, ele rezou aos deuses para ser sua melhor obra e despejou no metal todos os sentimentos e desejos que tinha para com Hayato.

Na manh? seguinte, quando Hayato chegou a forja, encontrou seu amigo deitado em um canto, dormindo como quem n?o dormia a semanas. Preocupado ele correu para o lado de Ken e o balan?ou pelo ombro, tentando acordá-lo. Ken n?o demorou a despertar, apesar de estar exausto e quando viu seu amigo, sorriu:

- O que aconteceu? Você n?o costuma dormir na forja. – perguntou Hayato preocupado.

- Eu terminei a encomenda do Daimyo. Estarei partindo em breve de volta a minha vila, mas antes eu queria lhe fazer algo, pois você foi meu companheiro constante por todo esse tempo e eu valorizo sua amizade mais do que posso expressar em palavras. – disse Ken.

Surpreso e entristecido pela notícia da partida iminente, Hayato ajudou seu amigo a se levantar e observou enquanto Ken pegava em cima da bancada uma espada. Ela tinha uma bainha negra e simples e um cabo bem feito e decorado com delicadas vinhas:

- Essa espada é de longe a mais bela que já fiz. Espero que ela lhe acompanhe e ajude a te proteger em qualquer situa??o que você possa vir a precisar. Ela é sua, forjada com minha admira??o e respeito pelo seu caráter, agradecimento pela amizade e desejo de um vida longa e próspera. – disse Ken ao amigo.

Tocado pelas palavras de Ken, Hayato pega a espada com cuidado e de forma quase reverente a tira de sua bainha, apenas para ter sua respira??o tomada diante de tal trabalho magnífico. A espada em suas m?os brilhava prateada como a lua, extremamente afiada e com um equilíbrio sem igual. Era uma obra delicada, mas forte e só de olhar Hayato apostaria que podia cortar a?o e n?o ter nem mesmo um gr?o de sujeira manchando sua superfície, muito menos algo como um arranh?o ou rachadura.

- Meu querido amigo, n?o acredito que mere?o tal presente por algo t?o fácil quanto ser seu amigo, mas vejo a determina??o em seus olhos, ent?o irei aceita-la, com uma condi??o. Essa espada irá me acompanhar pela minha vida e pelas jornadas que irei enfrentar, apenas eu irei empunhá-la em respeito aos seus sentimentos para comigo, mas, quando minha vida chegar ao fim, ela será devolvida a você. – disse Hayato emocionado.

Ken, tocado pela dedica??o de seu amigo aceitou a condi??o imposta. No mesmo dia, após entregar as espadas prometidas ao Daimyo e garantir que eram do agrado, Ken partiu de volta para sua vila, deixando para trás um peda?o de si mesmo com Hayato.

O tempo passou. Mais nobres convocaram Ken para pedir-lhe espadas e em uma ocasi?o memorável o próprio Imperador encomendou uma arma com o, naquele momento, famoso ferreiro. A espada entregue ao Imperador era linda e mortal, e proclamada sem igual em todas as terras do leste, mas secretamente, Ken ainda considerava, mesmo depois de todo esse tempo, a espada presenteada à Hayato como seu melhor trabalho.

Nos anos que passaram Ken ouviu histórias sobre seu querido amigo e as batalhas que enfrentou, tendo ao seu lado uma espada dita invencível. Da mesma forma o próprio Hayato ouviu contos sobre o lendário ferreiro, forma como Ken era muitas vezes chamado pelo povo.

O ferreiro, que já n?o era mais t?o jovem quanto fora, se alegrou com as histórias e acompanhou com carinho cada notícia que lhe chegava sobre o velho amigo, no entanto, nem mesmo uma vez em todo o tempo que se passou desde a última vez que se viram, eles voltaram a se encontrar.

Ken viveu um vida aben?oada. Seu nome seria sempre lembrado como o mais talentoso ferreiro a andar naquelas terras. Ele n?o teve filhos, casado com seu trabalho como era, mas era amado por muitos e em seus anos tardios ensinou a vários jovens a arte que lhe foi passada por seu pai. Mesmo que nenhum de seus aprendizes tenha alcan?ado o mesmo nível de mestria que Ken, todos se tornaram ferreiros de razoável renome e viveram suas vidas confortavelmente.

Um dia, já na velhice, com a cabe?a cheia de branco e aposentado das forjas, Ken foi visitado por uma jovem. Ela se apresentou como sobrinha-neta de Hayato, sendo ela a neta do irm?o mais velho do seu querido amigo. Ela trazia consigo as mais tristes notícias. N?o menos que duas semanas atrás seu tio havia falecido de uma doen?a, trazendo tristeza para a família que muito o amava. Em seus últimos momentos ele lhes contou sobre seu velho e amado amigo, o ferreiro de talento inigualável que ocupava, mesmo depois de tanto tempo, um lugar em seu cora??o e pediu que, após sua morte, devolvessem a ele o presente que havia lhe dado, assim como tinham acordado todos aqueles anos atrás.

Arrasado com a notícia, Ken pegou o embrulho que lhe foi entregue e o abriu, para ver em seu interior, t?o perfeita quanto no dia em que foi forjada, a espada feita especialmente para Hayato.

O velho ferreiro agradeceu amavelmente e se despediu da jovem. Pelos próximos dias ele se escondeu dentro de casa, n?o recebendo nenhuma visita. Ent?o, no sétimo dia ele saiu e caminhou lentamente para o santuário da vila em que viveu toda a sua vida. Esse santuário era dedicado a ninguém menos que o deus que muitos anos atrás, sem que ele soubesse, havia aben?oado suas m?os. Quando chegou lá, ele colocou a espada de Hayato no alta de Inari, se ajoelhou e come?ou a rezar. Ken permaneceu na mesma posi??o por horas e horas, até que por fim um jovem sacerdote, preocupado com o velho, se aproximou e percebeu que em algum momento o ferreiro havia parado de respirar.

Toda a vila se entristeceu com a morte do seu mais amado e honrado habitante. As histórias sobre como, mesmo na morte, ele permaneceu de joelhos diante do altar de Inari e de como seu rosto estava preso em um sorriso gentil mesmo quando sua alma já tinha passado para o outro mundo, correram pelas terras do leste. Muitos pagaram seus respeitos pelo lendário ferreiro, de pessoas simples a nobres do mais alto escal?o. Foi apenas mais tarde, quando o luto pela morte de Ken já havia passado, que as pessoas perceberam que a espada colocada no altar de Inari tinha desaparecido.

Muitos se perguntam o que aconteceu com a arma. Alguns dizem que foi roubada por alguém sem honra, outros que um dos aprendizes de Ken ou um dos sacerdotes do santuário a guardou em um local seguro, mas a grande maioria acredita que Inari levou a espada, pois o velho ferreiro a tinha oferecido para o deus em seus últimos momentos. A verdade sobre a origem ou o destino da espada provavelmente nunca será conhecida, pois aqueles que sabiam a história n?o a revelariam em respeito a seu parente, e aqueles que a viveram já estavam juntos novamente no outro mundo. No fim, apenas os deuses podem afirmar com certeza saber exatamente o que aconteceu com espada forjada por Ken para seu amado Hayato.